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A poesia perdida

Por Mohammad Jamal.

Hoje me deu de procurar uma poesia em especial escrita quando ainda nos meus joviais 18 anos. Não transparece, mas eu já escrevi poesias e poemas carregados de ternura; outras em arrebatamentos de paixões, algumas reflexivas sobre a confidencialidade e o pudor que acometiam a minha juventude. Algo inesquecível e muito interessante; havia cores, perfumes e texturas na minha alma! Coisas de um passado bucólico quando ainda persistiam emoções de contos de fadas, casamentos de princesas, algo tão vestal e puro a ponto de me fazer rememorar Cândido, de Voltaire, que li com avidez numa tarde e repetidas outras vezes, quando algo me magoava a alma. E pasmem; esse é um curto romance da literatura em que o otimismo é protagonista e, contraditoriamente, foi escrito pelo primeiro escritor pessimista da história. Nele Voltaire narra epopeias de um jovem, Cândido, vivendo num paraíso edênico e recebendo ensinamentos do otimismo de Leibniz através de seu mentor, Pangloss.

Pois é, cadê o meu bloco de escritos onde guardei manuscrita aquela poesia? Já escarafunchei minha escrivaninha, velhas caixas cheias de papéis amarelecidos pelo tempo, encobertos pela poeira das estações; muitos invernos, poucos verões e raras primaveras. Por que não a encontro? Ela é a relíquia de um tempo pretérito; ela pontua como um marco a história de um tempo quando a sensibilidade das índoles montava à poesia e atravessava desertos existenciais incólumes às mágoas dos sonhos irrealizados. Por que não a encontro agora, logo agora, quando gostaria de recitá-la para você? Talvez não seja a hora certa, talvez a poesia da minha juventude lhe transpareça tediosa, insossa, puritana, assexuada, porquanto não contenha a lascívia que confunde e mescla sexo com amor, posse, fascínio; quando o maior dos amores e toda sua singularidade estão na liberdade dos sentimentos livres dos apelos fugazes, da mera reflexologia sensitiva da instintividade tátil. O amor é algo abstrato, sublime e quase indescritível. Antigamente morria-se por ele. “Onde aprender a odiar para não morrer de amor?”. (Clarisse Lispector).

Na fonética de “poesia” leem-se significados, sentidos e entendimentos muito amplos; não vamos entrar no mérito dos detalhes didáticos; transparecem-nos petulantes agora. A poesia, enquanto literatura sobrepõe-se ao concreto, ao abstrato e até ao vago. “… Seus olhos são lagos onde mergulho profundo minha paixão.” “… Seus olhos? Meu céu, meu paraíso, espaço etéreo onde me perco em sonhos…”. A poesia é tal um fruto suculento rico do néctar de um romantismo tardio.

É desse fruto fascinante que me vêm as lembranças marcantes deixadas pela leitura atenta de Cyrano de Bergerac. Aquela peça de teatro escrita em 1897 por Edmond Rostand, baseada na vida de Hector Savinien de Cyrano de Bergerac, escritor francês. Veja as amargas coincidências recorrentes que se intercalam e se repetem em épocas distintas; que horror. Cyrano, apaixonado por bela e inacessível donzela – Ah… Donzela. Coisa rara na atualidade – possuía cultura formal adequada, mas não detinha a inspiração, o talento e a conformidade poética para formular versos apaixonados com os quais pretendia conquistar a atenção e o amor da sua “donzela”. Além disso, um detalhe na anatomia da sua silhueta facial avultava-se em destaque. Seu nariz enorme assustava as pessoas. Transparecia um aríete ameaçando derrubar a tudo à sua frente; um dedo em riste de um mulá apontado ameaçadoramente a um condenado.

Cyrano, um apaixonado poeta. Um perspicaz dramaturgo. Um exímio espadachim. Um bravo soldado. Um grande filósofo. Um profundo estudioso da Física, Matemática e Astronomia. Cyrano de Bergerac possui qualidades incomuns, porém, a sua feiura as encobre como uma sombra sinistra. O nariz avantajado é o motivo de sua frustração. Na França do século XVII, ele sofre por amar intensamente sua prima, donzela, Roxane; jovem, bela, emotiva. A solução: com a paixão devastando sua alma tomada pelo fogo do amor oculto, à semelhança dos fogos que devastam nosso Pantanal, nossa Amazônia. Resolve contratar um poeta capaz de fazer despertar com versos apaixonados, puritanos, diga-se, o amor ou alguma admiração da sua amada. Traduzindo: travestir de si um dublê, um simulacro romântico e talentoso como seu personagem real fantasiando a realidade com intensa dramaticidade postiça de um impostor poeta, o falso plágio de si mesmo. Desse ponto, avancemos agora até o obscuro século XXII.

Das trevas da ciência brota o homem moderno avesso aos arcaísmos filosóficos da ética desde Aristóteles ao super-homem de Nietzsche, atropelando os pensadores mais influentes do mundo e obsolescendo todas as ideias que pregaram. Tudo se transforma numa sopa de incongruências pueris servida em ‘auto service’ num fast-food qualquer. Platão, Descartes, Nietzsche, Kant, Rousseau, Euclides, Sócrates, foram apenas lavadores de carruagens e bigas no trânsito da evolução cultural do homem/ciência e tecnologia; o homem de e, para consumo; literalmente insensível e indigestamente incomestível para uns poucos.

Esse novo homem imediatista e apressado, exageradamente pragmático ao projetar o futuro como uma realidade autofágica, aboliu a sensibilidade, construiu a lascívia do coito fugaz, apagou elementos transcendentais do amor, substituindo-o pela posse, objeto do prazer. Poesia, amor, inter-relação de almas? Obsolescências. Do amigo Senhor X: _ olha meu amigo Mohammad, se lembra daquela gata gostosa que eu estava ‘amansando’ lá naquela loja de calçados? Pois é, ontem nós saímos e eu, cheio de ‘amor’ pra dar, fui todo manso, carinhoso e perguntei logo pra ela: “_ Edmunda! Você vai liberar essa raquete pra mim hoje? Tô seco.”. Imagina? Ela se retou! Me largou ali no meio da rua e pegou o primeiro buzu que passou para Realengo! Perdi meu tempo.

Ah, pronto! Achei a poesia que estava procurando. Já estava dando esse manuscrito como perdido. Você prefere que eu a recite ou que a transcreva aqui abaixo para sua leitura? Ah… Entendo, vai pegar o carro na oficina antes que feche. Entendo.

Mohammad Jamal é escritor.

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