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Como o sonho da nova ponte virou pesadelo na Nova Brasília

Zé, Nino e Sônia querem saber o que os políticos decidiram sobre o destino da Nova Brasília, onde eles vivem há décadas. Imagens: Thiago Dias/Ilhéus Comércio.

1º de julho de 2020. O governador salta uma mureta, e um homem da sua comitiva elogia a agilidade demonstrada no pulo: “Tá bem”. Foi o primeiro elogio que Rui Costa ouviria naquela caminhada de quinhentos metros, entre palmas e saudações de moradores de Ilhéus. Era o dia da inauguração da ponte Jorge Amado, obra idealizada ainda no governo de outro petista, o hoje senador Jaques Wagner.

A comitiva segue seu rumo. Fogos de artifício estouram no céu. Alguém pergunta: não estão proibidos? A questão se referia ao decreto que proibiu a queima de fogos durante a pandemia de Covid-19, que, há dois meses, grassava descontroladamente em Ilhéus. “Desobediência civil”, um gaiato respondeu, no tom bem-humorado que a ocasião parecia autorizar, apesar da mortandade em curso.

Em meio às saudações, Rui escutou o secretário de infraestrutura da Bahia, Marcus Cavalcanti, explicar que o estado ainda tem desapropriações a fazer na comunidade fundada por pescadores há mais de setenta anos, a Nova Brasília de onde pessoas acenavam felizes para os políticos. O prefeito de Ilhéus, Mário Alexandre (PSD), presenciou o diálogo, pois manteve-se muito próximo do governador durante todo o trajeto.

Menos de três meses depois, algumas daquelas pessoas que acenaram para a comitiva nutrem sentimentos diferentes daqueles experimentados na entrega oficial da ponte. As coisas mudaram quando dois homens se apresentaram como funcionários do Governo da Bahia para notificar moradores sobre a desapropriação das casas onde vivem há décadas.

Naquela caminhada, depois de ouvir a explicação do secretário, Rui perguntou a Cavalcanti se as pessoas já tinham sido informadas sobre as novas desapropriações nos planos do governo. O titular da Seinfra respondeu que sim.

Contudo, segundo depoimentos colhidos pela reportagem do Ilhéus Comércio, naquela alegre manhã de 1º de julho nenhum morador da Nova Brasília sabia que o poder público pretende levar os tratores do progresso novamente à comunidade, como ocorreu no início das obras da ponte, inclusive com a demolição do Colégio Estadual Padre Luiz Palmeira – e o consequente apagamento dos seus cinquenta anos de história.

No início de 2020, de acordo com os relatos dos entrevistados, um homem foi à Nova Brasília e colheu informações para o que chamou de cadastramento. O Governo da Bahia publicou o decreto da desapropriação em maio de 2019.  “Em fevereiro veio um cara dizendo que ia fazer um cadastro. Um tal de Juliano. Depois sumiu. Agora, outros apareceram querendo que a gente assinasse um papel, sem mostrar nada nem projeto nenhum”, afirma Antonino Melgaço Fagundes, um dos proprietários notificados informalmente sobre a desapropriação. A informalidade é uma característica recorrente nas abordagens feitas aos moradores. Segundo eles, nenhum documento e informação mais detalhada lhes foram apresentados.

Nino, como é conhecido, mora na Nova Brasília há 50 dos seus 56 anos. Os homens do governo estimaram em 34 mil reais o valor da casa onde ele vive com a esposa, o filho e a irmã – dependente de cuidado especial. A oferta não os convenceu. “Enquanto a gente tiver força, a gente vai lutar para não sair. Aqui não tem preço, não, rapaz. Aqui é uma história: é a nossa vida aqui. A gente não quer dinheiro. A gente quer ficar aqui. A gente quer terminar nossa história aqui”, disse, repetindo as palavras com os olhos marejados.

Por causa da pandemia, os bicos de pedreiro de José Antônio Santos de Jesus, vizinho de Nino, rarearam. O auxílio emergencial de seiscentos reais virou sua única fonte de renda. Para o Governo da Bahia, a casa onde ele vive não vale mais do que “R$ 15 mil”. “Vieram ontem pressionar aqui pra gente deixar a casa. Querem pagar um dinheiro que a gente não vai poder nem comprar terreno”, lamenta o pedreiro, que mora na mesma residência há cinco décadas. Seus pais chegaram na antiga vila de pescadores quando ele tinha dois anos.

Segundo Zé, a estratégia do governo estadual é negociar individualmente com os moradores para “pressionar e bulir com o psicológico, para fazer aceitar o que eles querem”. Ele conta que perguntou aos homens da desapropriação como conseguiria comprar um terreno e construir uma casa com quinze mil reais. Um deles respondeu assim, narra Zé: “Sua casa tá velha”. “Quer dizer, já começou a humilhar”, concluiu, enquanto ajeitava a máscara com o escudo do Flamengo.

O sentimento de que estão sendo injustiçados é comum entre os moradores que ouvimos. Zé, por exemplo, questiona: “Por que ninguém mexe no Opaba? É por que o dono tem nome?”.

O Ilhéus Comércio levou essa e outras perguntas dos moradores da Nova Brasília ao conhecimento da assessoria de comunicação da Secretaria de Infraestrutura do Estado da Bahia, na manhã de sexta-feira (18), em mensagem de e-mail antecedida por telefonema. A pasta não nos respondeu até o fechamento desta matéria.

A falta de informações claras sobre as desapropriações também fez surgir rumores de que a intenção do Governo da Bahia e da Prefeitura de Ilhéus é remover toda a comunidade para que a Nova Brasília dê lugar a um condomínio de luxo. Prova de que a hipótese conspiratória ganhou força é uma faixa estendida perto da ponte.

Mensagem na faixa ecoa rumor sobre plano secreto para transformar a Nova Brasília num condomínio.

Um dos moradores com quem conversamos tem uma trajetória acadêmica diretamente ligada às políticas de promoção de acesso ao Ensino Superior dos governos petistas. Aos 29 anos, Gabriel Souza Santos sempre estudou em escolas públicas. Como teve desempenho excelente no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), conseguiu uma bolsa integral do FIES na Faculdade de Ilhéus, onde estudou Direito. Hoje é advogado voluntário das famílias ameaçadas pela desapropriação.

Quando estávamos na Nova Brasília, o professor Reinaldo Soares, pré-candidato a prefeito de Ilhéus pelo PTB, chegou à comunidade. Sentados em círculo, moradores contaram ao político sobre os dias de angústia que atravessam. Reinaldo destacou o fato do decreto de desapropriação ter sido publicado em maio de 2019, enquanto as principais pessoas afetadas só tomaram conhecimento dele em setembro de 2020. Para Soares, enquanto o governador agiu de forma “tirânica”, o prefeito pecou, no mínimo, por omissão.

Acompanhado por uma equipe com cinegrafista e fotógrafo, Reinaldo iniciou uma transmissão ao vivo no Facebook e, depois de introduzir seus seguidores no assunto, deu a palavra a Gabriel.

Diante da câmera, o advogado explicou a demanda da comunidade. “O que a gente pede ao Estado, nesse exato momento, é apenas a publicidade dos atos. É um princípio constitucional. Aqui temos pessoas carentes, adoecidas, idosas, todas estão sofrendo demais. Dorme hoje e amanhã não sabe se vai estar no mesmo local. Foram ofertados valores de R$ 34 mil, 15 mil reais”.

Depois da insistência dos moradores, os prepostos do governo estadual disseram que as demolições vão ser necessárias para que um novo trecho de ciclovia alcance a orla próxima do Morro de Pernambuco. A versão não convenceu a comunidade. “Por que destruir quinze casas para passar uma ciclovia, sendo que é possível adaptar o projeto? Quer fazer ciclovia? Por que não faz à parte? Tem a necessidade de destruir casas?”, questionou o advogado.

Sem informações precisas e oficiais, cresce na vizinhança o temor de que toda a comunidade seja removida. Mesmo pessoas não notificadas temem que isso aconteça no futuro próximo. É o caso de Sônia Souza Lessa, que tem 65 anos. Ela mora com Ana, sua mãe, uma idosa de 85 anos. Na última terça-feira, 15, quando os homens notificavam uma vizinha, Dona Ana perguntou a eles se sua casa também seria demolida. “Fique aí, vó!”, respondeu um deles, de forma ríspida, conforme Sônia, que recebeu o Ilhéus Comércio na sua varanda, na manhã de quarta-feira (16).

Sônia tem tido dificuldade para dormir. Fica tensa e preocupada, sobretudo com a saúde da mãe, que já refutou definitivamente a possibilidade de deixar a casa construída há 48 anos: “vou morrer aqui”.

Você está com medo? “Eu não sei se é medo. Dá uma tristeza, sabe? A minha mãe às vezes fica parada, pensando, dá aquela tristeza. A gente batalhou tanto para ter isso aqui. Nós vivíamos de casa em casa, de aluguel. Meu tio arrumou esse terreno pra gente”, respondeu Sônia, sentada numa cadeira de plástico, antes de nos contar a história da casa.

O primeiro lar era de taipa, como outras da comunidade na época. Mãe e filha carregaram pedras do Morro de Pernambuco para fazer o piso da casa, com a ajuda da família. A estrutura foi feita com madeiras vindas “da fazenda de Gildásio Lins”, onde o pai de Sônia trabalhou.

Ela nos lembrou que Rui Costa, assim como os moradores da Nova Brasília, nasceu numa comunidade popular, o bairro da Liberdade, em Salvador. “Ele veio de baixo”. A origem do governador parece despertar em Sônia a esperança de que ele se comova com os apelos contra as desapropriações. No fim da conversa, a mulher de sessenta e cinco anos se levantou e a seguimos até a cozinha. Lá estava o filtro de barro da casa, coberto por um pano. “Uma vez o governador disse que só bebe água em um filtro igual a esse. Igualzinho, só não tem o pano”.

Comentário do repórter.

Faixa dos moradores da Nova Brasília.

A falta de transparência sobre as intenções dos gestores públicos, nesse caso, nos remete ao que o historiador inglês Peter Burke chama de política da ignorância: “a prática política de empresas e governos que visa manter o público na ignorância de alguma coisa que seria de seu interesse saber”. Nesse sentido, o silêncio da prefeitura e do governo estadual é sintomático.

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