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As sementes da Mandrágora

Mohammad Jamal.

Por Mohammad Jamal.

Memórias. Vou iniciar esse breve prólogo confrontando alguns ‘déjà vu’ da vida, coisas que, necessariamente, me fazem voltar ao espectro da literatura que sempre impregnou minha vivência. E são tantos os episódios recorrentes que chego a pensar que já vivi várias vidas nesse curto espaço da nossa existência. Transpareço como personagem diverso; choca-me encontrar comigo mesmo em dramas e romances de escritores russos, franceses, alemães eméritos de talentos que tanto me influenciaram com suas obras magistrais. E mesmo sabendo que eu não esta lá em época tão distante deste presente amargo, ao mesmo tempo, tão perto da arte, da literatura, da poesia, dos mestres do pensamento, da ficção e criacionismo artístico que impregnou as obras magistrais que li em êxtase. Que devo ao meu amado irmão Telmo, escritor e poeta, que desde muito cedo orientou as leituras assimiláveis à minha tenra idade. Muita gratidão a ele, irmão querido, que reside à minha eterna saudade.

Bemóis e sustenidos. Das minhas inesquecíveis aulas de piano ainda criança, quando me exigiam extensos exercícios com acordes complicados não obstante minhas mãos pequenas e a distância entre o dedo mindinho e polegar não cobrirem a escala entre as notas dó e si e meus pés, que não alcançavam os pedais, que lembro sempre, o pedal da direita “sustain” que permite que as cordas vibrassem livremente. O pedal da esquerda “o una corda” cuja função primária é a de “abafar” o som do instrumento.  Da onipresença das duas professoras; uma ligeiramente seca e de pouca paciência; a outra minha irmã amada. Um anjo de doçura e mimos para comigo, seu irmãozinho caçula. Nós nos amávamos. Era como minha segunda mãe. Leda; vinte e dois anos a mais que eu, nos meus infantis oito anos. Ela dominava o piano; as teclas pareciam seguir como serviçais os seus dedos delicados que as tocava com muita leveza talento. Para mim os dois pianos representavam dois bedéis rabugentos que roubavam os meus momentos de lazer junto às outras crianças que se divertiam à vontade no nosso enorme quintal arborizado, e eu ali preso aos exercícios das escalas pentatônicas intermináveis. Eu não entendia os porquês de falarem que eu seria um grande solista. Pois é; não fiz o conservatório de musica. Não segui tocando. Não consegui ser o ‘solista’ e hoje provecto, guardo certa mágoa daqueles instrumentos irascíveis que tanto exigiram de mim, para nada. Quem iria parar na rua ou num cruzamento para ouvir-me tocar Bagatelles op. 26; Septet; Sonatina em in G Maior ou Sonata para piano n. 2?  Eu tocando musicas clássicas ao piano nos cruzamentos das ruas. Pra quem ouvir? Quem ouve música clássica na atualidade? Talvez algum galo velho da minha idade. Eu certamente seria solenemente convidado junto com meu velho piano a para desocuparmos o espaço público e facilitar o trânsito dos pedestres. Seria rebocado junto com nosso vetusto Fritz Dobber.

O ecômio e louvor da imprensa a um gênio virtuose. “Não é costume incluir os compositores de música no número dos escritores (embora eles sejam também autores). Todavia, não podemos passar em silêncio as seguintes composições, gravadas e postas em circulação por mãos amigas: Polca para pianoforte, dedicada a Sua Excelência, a Condessa Luisa Skarbekowa, por Frederico Chopin. O compositor desta dança, que apenas conta 8 anos, é verdadeiramente um gênio, do ponto de vista musical. É filho de Nicolas Chopin, professor de francês e de literatura do Liceu de Varsóvia. Não só executa ao piano, com uma facilidade e um gosto notáveis, os trechos mais difíceis como já compôs diversas danças e variações que enchem de espanto conhecedores e críticos, sobretudo se se considerar a pouca idade do autor. Se tivesse nascido na Alemanha ou na França já se teria celebrizado por todos os países do mundo. Possa este artigo lembrar ao autor que o nosso país, também, é suscetível de produzir os seus gênios. Bastaria, muitas vezes, apontá-lo à atenção do público para torná-los conhecidos”.      — Revista de Varsóvia, janeiro de 1818. Lista das obras polacas publicada em 1817.

A memória auditiva. Já aos 27 anos de idade, Beethoven começou a apresentar sintomas de deficiência auditiva. Aos 48 estava completamente surdo e sofria de tinnitus, ouvindo constantemente ruídos perturbadores sem qualquer fonte externa real. As pesquisas mais recentes indicam que a surdez teria sido consequência de febre tifoide, transmitida pela pulga dos ratos. Mais recentemente, analisando quimicamente uma mecha de cabelos do Beethoven, um pesquisado descobriu que ele morreu em razão de intoxicação por chumbo.

Mestras em disputa. E havia mais; as professoras do meu colégio disputavam entre si quem iria passar as ferias na fazenda do papai aplicando-nos aulas de português, matemática, e redação, felizmente, era só nos finais das tardes quando eu já estava moído de cansado de correr pelas campinas, que elas vinham aplicar-me as tais aulas de reforço. Uma tortura pedagógica que não conseguia vencer o meu sono.

Amo a natureza. Mas eu gostava mesmo era de ver os campos de milho, correr pelos arrozais e pelo trigal que transparecia um mar dourado com ondas e tudo, soprados pelo minuano que vinha frio lá das bandas da Argentina. De ver as colheitas das fruteiras, dos cereais, dos tubérculos. Do grão de bico, das lentilhas, ervilhas, por aqueles mujiques de mãos calejadas pela lida no campo. E ficava curioso e pensativo ao vê-los separarem os melhores grãos dos cereais, as frutas mais bonitas e suculentas, os legumes mais viçosos e até cortarem alguns galhos dos belos pessegueiros, ameixeiras, macieiras, e guardar esses galhos numa boa sombra, regando-os vez em quando.

Certo dia, cheio de coragem, perguntei ao meu ursão, meu pai. Homem enorme, forte e peludo, valente e corajoso, que costumava me carregar às costas nas subidas das poucas colinas da fazenda e para atravessar os arroios de águas geladas. Meu gigante e doce herói. Porque não levamos as frutas mais bonitas e os cereais viçosos para o paiol, meu pai? Ele me respondeu de pronto_ é por causa da Mandrágora. De início ate pensei no livro A Mandrágora, que é uma peça teatral em cinco atos onde Maquiavel faz uma critica a sociedade da idade média de maneira irônica, uma comédia ao estilo característico do escritor.

Arrogância, narcisismo, veneno. Mandrágora? Sim porque as frutas mais belas e suculentas quanto os cereais mais carnosos de algumas plantas mais robustas tendem, tal qual o homem com o passar dos anos, a tornarem-se vaidosos, narcisistas, arrogantes e por fim venenosos. Por isso as frutas, legumes e cereais mais bonitos não devem ser consumidos, mas servirem para fazer renascer novas plantações sadias e fortes. No espaço tempo em que murcham, secam e soltam as sementes, elas perdem a arrogância da beleza e, plantadas ou semeadas novamente nos proporcionam uma boa colheita.

O Conselho de بابا baba: Com a Mandrágora foi assim. Ainda é uma fruta muito bonita, avermelhada, com um perfume doce e uma polpa carnosa macia e agradável ao paladar. Mas a presunção tornou-a venenosa, igual a alguns personagens da nossa história. Nunca ponha um fruto da Mandrágora na sua boca, meu sheik amado. Eu adorava papai. Ele está aqui na minha memória.  

Mohammad Jamal é escritor e colunista do Ilhéus Comércio.

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